Nossa História
AMFaC-RJ: 20 ANOS DE HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO
Em 2024, ano que comemoramos os 20 anos da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro (AMFaC-RJ), resgatamos a trajetória da nossa Associação. Aliás, a história da AMFaC-RJ não se limita às divisas do estado e se relaciona intimamente com toda a construção da especialidade no país. O texto produzido para esta seção é fruto de entrevistas com atores relevantes para o percurso da Associação e uma coletânea de documentos analisados.
“Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.”
— Walter Benjamin
20 OU 23 ANOS? O COMEÇO ANTES DO COMEÇO
Nas entrevistas e buscas documentais que foram realizadas para organização desse resgate histórico, nos deparamos com uma primeira revelação: talvez a AMFaC-RJ não tenha 20 anos de idade.
Embora o primeiro registro cartorial da Associação seja datado de 24 de julho de 2004 e muitas Médicas e Médicos de Família e Comunidade lembrem de sua fundação na ocasião do 6º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, que aconteceu aqui no Rio de Janeiro, há um outro começo.
Em dezembro de 2001, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) em Niterói, um grupo de médicas e médicos formado por Ricardo Donato Rodrigues, Verônica Alcoforado Miranda, Moema Guimarães Motta, Maurílio Pereira de Carvalho Salek, Paulo Cavalcante Apratto Júnior, Flavio Marcio Wittlin, Marcia Tania Nascimento Silva, Edneia Tayt-Sohn Martuchelli, André Luiz Alves de Pinho e Rodrigo Pereira da Costa se propuseram a formar o que seria a primeira gestão da então fundada em assembleia, Sociedade de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro. O problema? Nem a Associação, nem a gestão eleita foram registradas.
Só em 2004, pouco mais de 3 anos depois desta primeira iniciativa, uma nova gestão eleita registrou a AMFaC-RJ, composta por algumas pessoas que já estavam na conformação inicial, outras que se juntaram nessa tarefa. Começamos antes de tudo lembrando aqui os nomes desses colegas, protagonistas de nossa história.
OS CAMINHOS ATÉ A FUNDAÇÃO DA AMFaC-RJ
Falar da fundação da AMFaC-RJ, de alguma forma, nos obriga a contextualizar o cenário que permitiu que trabalhadores e trabalhadoras que naquele momento estavam ligados à Atenção Primária no estado do Rio de Janeiro sentissem a necessidade de estarem juntos. Três elementos nos parecem importantes nesse sentido: o protagonismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com a criação de um dos primeiros Programas de Residência de Medicina Geral e Comunitária do país, em 1976, e posteriormente com a fundação do Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária em 2006; o Programa Médico de Família de Niterói, de 1992, que do outro lado da ponte propunha algo novo para organização da rede assistencial daquela cidade; e a própria história e construção da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) — ainda Medicina Geral e Comunitária —, que encruzilha a história nacional da MFC com a do Rio de Janeiro.
Há sempre o risco de não dar conta de todo o contexto político. Vale lembrar que vivíamos anos de muitas produções e reflexões no Brasil e no mundo. No período que compreende os anos 70 e 80, tivemos a Conferência de Alma-ata, na União Soviética, que buscou firmar o compromisso de fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS) no mundo. Ou ainda, em 1986, a primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, da qual saiu a Carta de Ottawa. No Brasil, vivíamos a ebulição da redemocratização e a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), que foi reflexo de acúmulo do Movimento da Reforma Sanitária e apresentou caminhos para a construção do Sistema Único de Saúde (1990).
No Rio de Janeiro, mais especificamente na UERJ, já em 1976 surgiria o que seria um dos três primeiros programas de residência de medicina geral e comunitária do Brasil, junto do Centro de Saúde Murialdo (Porto Alegre/RS) e do Projeto Vitória (Vitória de Santo Antão/PE). O grupo da UERJ iniciou um processo de fortalecimento da MFC, que ainda ganhava contornos e se caracterizava. Não havia SUS, nem mesmo Programa ou Estratégia de Saúde da Família. Existia alguma clareza e, talvez, uma utopia de certo modelo e formação para profissionais de saúde especialistas em integralidade, mas que carecia de cenário de atuação.
Outra história, talvez mais esquecida, mas também relevante para a existência da AMFaC-RJ é a vanguarda que Niterói tomava já em 1992, propondo caminhos para a rede assistencial do município. Inspirada por e com assessoramento técnico de Cuba, criou-se o Programa Médico de Família, que não apenas (dado o contexto da época) teve bastante sucesso, como também construiu um ambiente de formulação e de trabalho para médicas e médicos integrais, gerais e comunitários, de família e comunidade, além de sanitaristas e outros profissionais que viam sentido em um modelo de cuidados primários e comunitário.
Essas histórias imbricam o Rio de Janeiro com a própria criação da especialidade como também com a criação da SBMFC. Em 1981, a Comissão Nacional de Residência Médica formaliza, sob o nome de Medicina Geral e Comunitária, a especialidade e neste mesmo ano é fundada a Sociedade Brasileira de Medicina Geral e Comunitária (SBMGC). Contudo, a SBMGC não tem vida longa e logo fica inativa. Em 1985, acontece o I Encontro de Residentes e Ex-Residentes de MGC, em Petrópolis/RJ – primeiro evento nacional da área, onde se decidiu que os médicos formados em residência na área deveriam reativar a SBMGC e se candidatar a assumir a Diretoria – que, até então, era assumida pelos fundadores da especialidade no Brasil (psiquiatras, sanitaristas, clínicos, infectologistas, etc). No ano seguinte, em 1986, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, um grupo de Médicas e Médicos Gerais e Comunitários foi eleito. Entre 1986 e o início dos anos 2000, a SBMGC passou por altos e baixos, se mantendo inativa por diversos momentos. Em 1994, o governo federal cria o Programa Saúde da Família (PSF) e se inicia assim uma orientação mais orgânica para a atenção primária do país, criando parte das condições para consolidação da Medicina de Família e Comunidade.
No início dos anos 2000, o Rio de Janeiro sedia o 1º Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitária, quando então surge a proposta de reativação da SBMGC. Aquele grupo que compunha o pioneiro Departamento de Medicina Integral, da UERJ, os médicos da atenção primária de Niterói, entre outros poucos que trabalhavam nos ‘PSF’, vão participar da construção desse espaço. No ano seguinte, pela primeira vez se fala numa Sociedade de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro. Três anos antes de seu registro oficial: um começo antes do começo.
Em março de 2001, a SBMGC é reativada pela última vez, já com o novo nome da especialidade Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Nessa nova conformação, é proposto o 6º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade (CBMFC), no Hotel Glória. Congresso no qual a professora Maria Inez Padula Anderson assumiria como presidente da SBMFC. O Congresso reuniu cerca de duas mil pessoas entre médicas e médicos de família e comunidade, trabalhadores e entusiastas da APS de todo país. Das anedotas que valem ser lembradas, o Professor Ricardo Donato, que foi entrevistado para produção deste material, lembra da necessidade de pechinchar a presença da Bárbara Starfield no 6º Congresso Brasileiro:
“A Sociedade Brasileira como estava inativada, não tinha nada. […] A essa altura, Inez era presidente da brasileira. Em 2004, veio a Bárbara Starfield pela primeira vez em um congresso no Brasil. Foi bastante chorado, porque ela cobrava. Inez mandou mensagem para ela. Quem respondeu foi a Secretária dela que passou os valores. A gente não tinha um tostão!”
Mas por que o 6º CBMFC é tão relevante? É nesse momento, em 2004, que novamente se reúnem todos esses personagens que vinham ao longo das últimas décadas desbravando a APS do estado do Rio de Janeiro e elegem uma nova gestão para a associação estadual, que seria responsável por finalmente fundar oficialmente a Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro.
CONSOLIDANDO A IDENTIDADE DA MFC NO RIO DE JANEIRO
O trabalho da AMFaC-RJ a partir de então não seria simples. Embora desde 1994 tivéssemos o PSF criando o horizonte de organização da Atenção Primária brasileira, o estado do Rio de Janeiro até os dias atuais se mantém como um dos com menor acesso a equipes de Saúde da Família e de equipes da Atenção Básica. Nas Universidades não era muito diferente. Os currículos médicos ainda pautados no modelo flexneriano, com o percurso da formação majoritariamente hospitalar, também não criava o espaço para o trabalho das Médicas e Médicos de Família e Comunidade.
A AMFaC-RJ precisaria lidar com o cenário de fortalecer uma especialidade no estado do Rio de Janeiro, que carecia de postos de trabalho. De pronto, foi na construção de espaços de debate entre as secretarias de saúde, as universidades e as médicas e os médicos da APS que a entidade caminhou. Em 2005 e em 2006 foram realizadas a 1ª e 2ª Jornada de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nesse meio tempo, também era comum que, em parceria com as Universidades do interior, fossem realizados pequenos simpósios e palestras. Instituições, como a Faculdade de Medicina de Petrópolis, já tinham programa de residência em MFC e tradição na atuação comunitária. O Professor Ricardo Donato nos conta dos ‘santinhos’ que faziam explicando o que era a Medicina de Família e Comunidade e iam para as ruas em espaços de feiras e transporte público panfletar sobre essa especialidade que seria tão importante para o Rio de Janeiro.
Em junho de 2007, acontece o 1º Congresso de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro, também conhecido como Congresso da AMFaC-RJ, cujo tema “O Rio unindo forças pela Atenção Primária à Saúde” já demonstrava o papel que a entidade queria assumir naquele período.
Embora os esforços fossem tamanhos, o trabalho da AMFaC-RJ ainda se concentrava bastante na capital. Sobretudo, quando a partir de 2009 iniciamos um processo de ampliação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) na cidade do Rio de Janeiro, pela gestão do prefeito Eduardo Paes, coordenada pelo então subsecretário de atenção primária, vigilância e promoção da saúde, Daniel Soranz, também médico de família e comunidade. Em 2008, a cobertura de equipes de Saúde da Família correspondia a 3,5% de sua população. No final de 2013, atingiu mais de 40% dos cariocas. Estando, hoje, com pouco mais de 70% de cobertura.
A gestão municipal do Rio de Janeiro coloca peso e prioridade na APS. Não apenas expande as equipes de Saúde da Família, mas também fortalece a Medicina de Família e Comunidade como a especialidade da APS. Há complementação de bolsas para residência e ampliação da residência na cidade como estratégia de formação de novos especialistas. A cidade do Rio de Janeiro passa a atrair médicas e médicos de família de todo o país.
Nessa construção da APS Carioca, atores que estavam na AMFaC-RJ mas também circularam junto a SBMFC e tiveram a oportunidade de fazer contatos com países que já tinham a Atenção Primária melhor organizada serviram de ponte para que a gestão municipal do Rio de Janeiro pudesse conhecer melhor os diversos modelos de APS como o de Portugal, da Inglaterra, entre outros.
Não era incomum a colaboração com o município do Rio de Janeiro para desenvolvimento de formações para a rede. Em 2016, por exemplo, a AMFaC-RJ conduz junto da SMS-RJ o Simpósio de APS que se dedicava a pensar os atributos na prática assistencial e o Simpósio sobre Mortalidade Materno Infantil na cidade que buscou construir respostas ao diagnóstico feito pela secretaria de saúde. No final deste ano de 2016, a cidade do Rio de Janeiro sedia a 21st WONCA World Conference of Family Doctors, com o tema ‘Family Medicine. Now, more than ever!’. O evento é como uma celebração do feito da cidade em valorizar e construir a Atenção Primária e a Medicina de Família e Comunidade.
Manter uma associação como a AMFaC-RJ ativa e produzindo não era tarefa simples, vivíamos ainda um momento de consolidação. Durante todo esse período que vai da fundação da entidade até 2016, os principais nomes que mantiveram a associação trabalhando e funcionante eram da UERJ, que tinha uma história mais longeva na Medicina de Família e Comunidade, com formação de MFCs e quadros políticos.
FEBRE POR DENTRO – TRANSIÇÃO ENTRE GERAÇÕES
Em 2014, no 4º Congresso da AMFaC-RJ, um grupo de jovens médicas e médicos de família e comunidade encenou a invasão teatral “Porque é Preciso Ser Assim Assado”. Numa cena em que todo o diálogo reiterava três palavras muito bem conhecidas, e muitas vezes rechaçadas, pelos trabalhadores da APS, as personagens de um paciente, um médico e um agente comunitário de saúde expressaram a inquietude de uma geração que queria discutir mais do que o que se apresentava à primeira vista. “Febre por dentro! Febre por dentro? Febre por dentro.”
Algumas das pessoas que viriam a construir gestões futuras da AMFaC-RJ assinaram e atuaram em “Porque é Preciso Ser Assim Assado”. Já presente na peça de 2014, o descontentamento com um modelo assistencial de APS muito focado no acesso e com pouco espaço para outros aspectos do cuidado foi um dos catalisadores para a ocupação da associação por essa nova geração a partir de 2016. Uma geração composta em sua maioria por pessoas com uma trajetória comum de participação no movimento estudantil de medicina, incluindo a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina – DENEM, e alguns dos centros acadêmicos de medicina do Rio de Janeiro – CASAF/UERJ, DABT/UFF e CACC/UFRJ.
Alguns momentos de encontro entre médicas e médicos de família do Rio de Janeiro nessa época contribuíram para o amadurecimento de uma coletividade que daria continuidade a pautas já encampadas pela AMFaC-RJ, mas também atualizando discussões relevantes. Em 2015, uma edição do curso de formação de preceptores EURACT, financiada pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, serviu como um desses momentos de encontro e organização política para essa geração. A imersão por três dias na cidade de Petrópolis, além da participação no curso de formação, oportunizou também o encontro de médicas e médicos de família que compartilhavam de angústias semelhantes.
A insatisfação com o modelo assistencial na APS e com a concepção do que significava ser médico de família na cidade do Rio, além do incômodo com a falta de abertura para discussões sobre gênero, raça, sexualidade e outras iniquidades, tanto no âmbito da organização da ESF nos municípios, quanto nos espaços associativos da MFC, foram combustível para a atuação política na AMFaC-RJ.
Vale lembrar os acontecimentos de 2016, a partir do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. O Governo Temer assume com uma agenda forte de austeridade fiscal. Há certa ebulição nos movimentos sociais e com a AMFaC-RJ não seria diferente. As novas gerações de MFC levariam a associação a movimentos como o Ocupa Saúde, em defesa do SUS frente aos cortes propostos pelo governo Temer. O documento de apresentação da chapa eleita para a gestão 2016-2018 afirma que:
“O nosso momento histórico pede ocupação. Ocupação do SUS, ocupação da cultura, das clínicas, dos postos, das escolas, da sociedade, pela articulação em rede, confecção de cartazes, distribuição de boa informação.”
Uma nova geração de MFCs que quer ocupação e a AMFaC-RJ se tornou um espaço possível para a construção desse projeto. Tinha algo de natural na coesão entre esse grupo de MFCs: o afeto, as trajetórias, o desconforto, a capacidade de organização, com a força motriz de tudo que acontecia no Brasil.
A transição entre gerações a partir de 2016 não foi necessariamente conflituosa. Claudia Ramos da Rocha, presidenta da gestão 2014-2016, foi inclusive preceptora do presidente seguinte, Moisés Vieira Nunes, em seu internato na graduação da UERJ, e uma das responsáveis por aproximá-lo da Associação. Apesar da inexistência de confrontos diretos, tratava-se de uma geração formada em residência de MFC ou trabalhando na cidade do Rio de Janeiro no contexto de expansão da APS e que ocupava postos de trabalho em equipes de Saúde da Família. Essas características produziram uma coletividade que trazia sua própria forma de enxergar a saúde, a política, a APS e a MFC brasileiras, e propunha novos caminhos para a condução da AMFaC-RJ.
AMFaC-RJ NA PONTA DE LANÇA DA MFC E DA APS
A AMFaC-RJ foi pioneira em toda sua trajetória. Da defesa intransigente do SUS, passando pelo rechaço à influência da indústria da saúde em sua trajetória, à pauta do combate às iniquidades em saúde, nossa Associação manteve-se como ponta de lança do que se apresentava de mais relevante no debate político da MFC.
A médica de família, que também foi membra da Gestão AMFaC-RJ entre os anos de 2012 e 2018, Melanie Noël Maia, nos lembra de um dos momentos em que a Associação não se furtou em protagonizar uma discussão extremamente relevante para a MFC no país:
“…tem uma marca muito especial da AMFaC em defesa do SUS, em defesa da equidade, que a gente pode perceber em algumas iniciativas […] É realmente histórico a AMFaC ter feito a primeira atividade científica sobre essa relação aborto e APS que hoje em dia é tão cara pra gente.”
Essa fala se refere ao congresso da AMFaC-RJ de 2014, realizado na UERJ, para o qual a comissão organizadora propôs uma atividade de tema de atualização clínica sobre aborto e APS. A atividade foi apresentada por duas médicas de família e comunidade do Rio, Débora Silva Teixeira e Regina Gonçalves de Moura, tornando-se a primeira discussão sobre o assunto em congressos de MFC no Brasil.
Essa MFC vanguarda do Rio de Janeiro, que compunha e circulava pela AMFaC-RJ, também construiu e fortaleceu a nível nacional espaços que se consolidaram na produção para a Medicina de Família e Comunidade. Os Grupos de Trabalho (GTs) da SBMFC, em especial os de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos; Mulheres na Medicina de Família e Comunidade; e Saúde da População Negra foram fortalecidos e/ou criados por essas pessoas. Sendo o Rio cenário para simpósios, congressos e reuniões desses GTs.
Um outro momento de destaque dessa postura firme da AMFaC-RJ foi em 2018, na organização do I Congresso Sudeste de Medicina de Família e Comunidade, junto das Associações de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. A iniciativa por si só já representava uma visão avançada da necessidade de ampliar a discussão para além das divisas do Rio de Janeiro. O evento, que possuía uma organização colaborativa entre as entidades e aconteceria no Memorial da América Latina, em São Paulo, estava captando recursos de patrocínio. Parte da comissão organizadora aventou a possibilidade de patrocínio pelo setor privado da saúde, como indústria farmacêutica e planos de saúde. A AMFaC-RJ foi a entidade que se colocou de maneira firme contrária a essa proposta e deixou claro que não estaria mais na organização do Congresso se esse fosse o caminho escolhido pelo grupo.
Coerente com essa postura, e talvez seu ponto de maior relevância, foi o protagonismo na organização dos médicos da APS em resistência ao desmonte conduzido pela gestão do prefeito Marcelo Crivella a partir de 2017. Nessa ocasião a AMFaC-RJ encontrou no Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro um parceiro na defesa dos interesses de seus associados e, juntas, as duas instituições conduziram o maior movimento de médicos(as) da história do estado. Em auditórios lotados para assembleias de greve, mesas de negociação e articulações interinstitucionais, foi também um movimento preocupado com a inclusão da população em sua construção.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, 1290 médicos das unidades básicas de saúde do município entraram em greve no segundo semestre de 2017. O movimento de greve foi uma resposta a demissão de mais de 100 profissionais da APS pela gestão municipal, além do fechamento de unidades de saúde, atraso de salários e redução do orçamento da saúde, com drástica redução da cobertura da ESF na cidade do Rio de Janeiro. Diversas unidades da cidade conduziram ações em seus territórios de abrangência, em conjunto com a população, mobilizando a opinião pública e a mídia. Passeatas organizadas pelo movimento grevista chegaram a fechar grandes vias da cidade, como a Avenida Rio Branco. Foram várias as manifestações em frente à prefeitura ou em frente à câmara de vereadores para pressionar contra o fechamento de unidades e a demissão de profissionais da APS.
Foi um movimento de médicas e médicos sincronizado com aqueles de outras categorias profissionais da APS, em defesa dos serviços de saúde do município do Rio de Janeiro e de seus trabalhadores. A interação entre as diversas categorias de trabalhadores da APS nos momentos de manifestação e greve foi materializada no movimento “Nenhum Serviço de Saúde a Menos”, que concentrava canais de denúncia sobre novos cortes realizados pela gestão municipal e também sobre situações de assédio sofridas por trabalhadores e trabalhadoras da ponta.
Uma articulação interprofissional facilitada pela sincronia advinda da construção de eventos e outras parcerias em conjunto. Ainda nos anos de governo Crivella, em 2017 e 2019, foram realizados dois congressos da APS carioca. Nesses momentos, a AMFaC-RJ abdicou da realização de seu congresso bianual para concentrar esforços na construção de eventos interprofissionais, em parceria principalmente com a categoria da enfermagem, por meio da Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade — ABEFACO.
Todos esses eventos fortaleceram uma mentalidade nos profissionais da APS carioca crítica à precarização do trabalho, ao trabalho terceirizado e quarteirizado. Houve resistência, pelos trabalhadores e trabalhadoras, a propostas de pejotização em distritos da cidade do Rio. Está entre os desafios da entidade fortalecer entre os trabalhadores da APS essa cultura que compreende a relação direta entre o trabalho em saúde precário e piores condições de cuidado.
20 ANOS DEPOIS… AGORA EM DIANTE…
Após os ataques e a resistência das médicas e médicos de família e comunidade à gestão Crivella, somado ao impacto da pandemia de COVID-19, vivemos anos difíceis para a AMFaC-RJ. A cidade do Rio de Janeiro se esvaziou de profissionais que foram buscar melhores condições de trabalho. Os longos períodos de construção de greves, o medo, o trabalho incessante no atendimento de sintomáticos respiratórios e as (importantes) políticas de distanciamento social fizeram com que entre 2020 e 2022, a AMFaC tivesse mais dificuldade de se manter firme e atuante. Adaptar-se para o online tinha seus desafios.
Mas o pós-pandemia abriria um novo movimento de renovação, uma nova geração de médicas e médicos de família e comunidade tentam construir caminhos para a entidade, com ajuda e colaboração dos que vieram antes. As pessoas que hoje constroem o dia-a-dia da Associação fizeram suas residências majoritariamente após os anos de Gestão Crivella e trabalham em uma APS que novamente já se transformou e traz novos desafios para o trabalho em saúde.
O estado do Rio de Janeiro, hoje, com 16 programas de residência, mais de 280 vagas de R1 por ano e que até hoje já formou em torno de 15% das médicas e médicos de família e comunidade do Brasil, requer que o papel da Associação seja plástico: ora encabeçando lutas por consolidação da APS, em outros momentos resistindo ao desmantelamento dela. Ora construindo e valorizando outras práticas na MFC, outras lembrando que ainda somos atravessados por iniquidades. Ora valorizando a entidade cientificamente, em outros momentos denunciando o gerencialismo, as condições de trabalho e o adoecimento dos profissionais. A renovação está sempre acontecendo. A necessidade de interiorização está escancarada em um resgate histórico que se concentra na capital. A AMFaC-RJ é um lugar de encontros, de reflexões e de desejo de um SUS, uma APS e uma MFC fortes.